segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Nacionalidade literária

A construção de uma nacionalidade, mais do que a defesa de uma identidade fechada ou auto-suficiente, é resultante de uma complexa trama de intercâmbios, de que são exemplos as literaturas nacionais latino-americanas do século XIX. Focalizando estas últimas, podemos ver mais facilmente que toda identidade nacional é sempre uma identidade problemática, pois não se trata de um processo que possa se estabilizar em uma solução ideal, derradeira ou definitiva. De modo semelhante ao ato de andar, em que é justamente um desequilíbrio repetido que torna possível o avanço, a identidade que se busca está sempre alicerçada em uma situação que já é passado (portanto, diferente do que somos agora), tentando alcançar (ou construir) um futuro que será certamente diferente do que pretendemos fazer dele (a partir de uma visão do presente que temos de nós e que será, certamente, abandonada pelas pessoas que nos observarem a partir do futuro). Aliás, se houvesse essa estabilização em uma identidade definitiva, não teríamos nada além de uma proposição tautológica ("nós = nós") que eliminaria todo o sentido da temporariedade e, ao fazer um só de dois termos diferentes, suprimiria o sentido mais profundo do sinal = (que é justamente o de eliminar essa igualdade absoluta, estabelecendo uma cissiparidade entre o que está à esquerda e aquele que está à direita, entre o que queremos ou o que achamos que somos e aquilo que efetivamente seremos). Do mesmo modo, um país que tenta estabelecer uma rigorosa identidade interna consigo mesmo ( e os casos do nazismo e do fascismo, presentes até hoje nos campos dos Bálcãs, não deixam de nos lembrar disso), exilando ou afastando radicalmente o outro, o diferente, não percebem que estão exatamente destruindo o elemento de diferenciação que - só ele - lhes permitiria ter uma identidade. Ao optarem por esse caminho, fazem com que a equação "nós = nós" tenha seu sentido esfacelado diante de uma igualdade sem sentido, de uma unidade não mais problemática e, portanto, não mais passível de ser utilizada como moeda de trocas culturais. É justamente essa exposição ao olhar do outro que nos permite instaurar um ponto de enunciação de onde, certamente, podemos nos ver sendo vistos, o que nos dá a experiência de nossa própria singularidade, mesmo que provisoriamente, como dito acima. É o olhar dos outros que nos inaugura como mesmos; que, em suma nos faz provisoria e precariamente idênticos a nós próprios. Assim, esse instinto de nacionalidade de que fala Machado de Assis talvez possa ser entendido como a mola propulsora que constitui a fisionomia evidente, externamente visível, de uma literatura, a partir da qual nos olhamos e nos constituímos em identidade problemática. Em outras palavras, trata-se de uma das condições iniciais para que se desenvolva uma dada literatura nacional. Todavia, para que isso ocorra, é necessário ainda superar duas posições antagônicas que marcam a infância desse instinto (mas que não deixam de se manifestar, de quando em quando, como sintomas de fraqueza ou de oscilação do sistema literário). No caso do Brasil (e de outros países marcados por um passado colonial), temos, de um lado, a adesão incondicional ao modelo metropolitano, revestido de pretenso cosmopolitismo; de outro, a recusa isolacionista e xenófoba de qualquer elemento estranho, estrangeiro ou externo. Como exemplo da primeira, podemos citar o parnasianismo de um Alberto de Oliveira, poeta que surgiu para a literatura pouco depois de Machado de Assis e que entende a construção de uma literatura nacional como um processo civilizatório, em que a cultura estrangeira (no caso, européia) venha disciplinar, dinamizar e aparar as arestas da incipiente literatura do jovem país. Quanto à segunda posição, um bom exemplo, entre muitos, encontra-se nos romances de um Plínio Salgado, escritor contemporâneo da revolução modernista de 1920 e que impôs a sua obra um nacionalismo tão fervente que, não cabendo nos limites do sistema literário (pois era inseparável de um conteúdo fortemente ideológico, no caso, de direita), encontrou sua expressão natural na militância fascista e nos libelos políticos. O instinto de nacionalidade deve, em suma,  à exemplo da intuição pessoana (que, somente ela, "pode servir de bússola nos desertos da alma"), funcionar como guia nesse processo provisório e interminável, verdadeiro trabalho de Sísifo, que é o de nos dar a ver um rosto específico que já não temos, que nunca mais teremos, e que, no fundo, nunca tivemos, pois que sempre estivemos (e estaremos) expostos à diferença radical com que o outro (o estranho, o estrangeiro) nos observa. Trata-se, então, a utilizar essa pragmática fácil e tão na moda atualmente, de uma inutilidade (pois que não chega jamais à conclusão do processo) necessária (pois que nos permite fazer mover objetos culturais aos quais imprimimos nossas marcas).

Alckmar L. dos Santos (UFSC), em comentário ao artigo "Instinto de Nacionalidade"(1873), escrito por Machado de Assis.

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