domingo, 9 de junho de 2013

O marido traído e Ganimedes do Polo Norte

Não nego. Não sou admirador da obra de Nelson Rodrigues, o Anjo Pornográfico. E não a conheço a fundo: limito-me a alguns contos lidos, e as televisivas adaptações de alguns de seus trabalhos.

Na verdade, do que eu conheço, sou detrator: o universo carioca da classe média, com seus casamentos-fachada, traições, sexo e assassinato. O Anjo Pornográfico também ficou conhecido por suas breves e certeiras frases. Algumas, caras reflexões de um culto - “Toda unanimidade é burra.”, “O adulto não existe. O homem é um menino perene.”. Outras, delírios de um reacionário - “A Europa é uma burrice aparelhada de museus”, e “O socialismo ficará como um pesadelo humorístico da História.”

Sobre o dito do adulto não existir. Este tinha uma aplicação muito particular no próprio Nelson Rodrigues.
Rodrigues, desde menino, foi versado na narrativa do sexo e da morte.

"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico."

Quando tinha oito anos, então aluno do Primário, ocorreu um episódio marcante para o Anjo Pornográfico. Houve um concurso de redação em sala de aula, cujo prêmio era a leitura em voz alta pela professora do texto vencedor. O tema da redação era livre.

A professora, que tinha em Rodrigues um de seus alunos favoritos, ficou chocada com a redação do guri: uma história de adultério. Marido encontra esposa nua na cama, e um homem pulando a janela. O marido mata a mulher, mas, com remorso, ajoelha ante o corpo da esposa, pedindo perdão.

Obviamente, a redação do Anjo Pornográfico era indiscutivelmente a melhor escrita. Mas a professora declarou empate com o texto de outro aluno, e leu somente o co-vencedor mais inocente.

Da primeira vez que ouvi dessa redação precoce do Anjo Pornográfico, caí para trás. Na idade dele, eu escrevia coisas muito diferentes.

Eu devia ter quase a idade do Anjo Pornográfico, numa ocasião em que a professora pediu como atividade a escrita de uma redação. Eu ficara encantado: vou escrever minha própria história! E já pensava em planetas distantes, em heróis espadachins, em Space Opera. Mas a professora fixou um tema: o Natal de um menino órfão e pobre. Fiquei arrasado.

De início, pensei que o texto teria de ser como aquelas reportagens dos telejornais que odiava (e odeio).
Mas, minha imaginação cuidou para que eu fizesse a história que queria, tomando o menino pobre como ponto de partida.

Aulas atrás, a professora havia escrito no quarto um texto, cujo título era “Uma viajem ao Sol”. A mim, era um título grandioso para um texto chato, que narrava uma história indígena. Decidi que o meu, então, se chamaria “Uma Viajem ao Polo Norte”.

Para o nome do herói, escolhi um que eu gostava: “Ganimedes”. Ganimedes era um belo rapaz que servia vinho aos deuses do Olimpo. Sim, eu era vidrado em mitologia grega.

O nosso órfão pobre, Ganimedes – que nome para um guri de rua! – admirava, comovido, uma árvore de Natal ricamente adornada, na vitrine de uma loja. Mas, então, o sobrenatural, o fantástico, o transcendental: O reflexo do eclipse do sol no vidro da vitrine abre um portal, que engole o nosso herói. Ganimedes vai parar no Polo Norte da minha cabeça, com rios de chocolate quente e brinquedos vários e novos espalhados nos mantos de gelo. Aqui, eu bebi (chocolate quente?) do filme A Fantástica Fábrica de Chocolate, e dos episódios especiais de Natal dos desenhos animados oitentistas.

A primeira coisa que Ganimedes encontra no Polo Norte é um trem dourado, prestes a partir. O guri embarca, e assim viaja pelas terras árticas, vislumbrado e alegre – um tipo de antecipação do longa animado O Expresso Polar. Ganimedes ainda faz amizade com o maquinista do trem: o Quebra-Nozes!

Mas, se tinha Quebra-Nozes, também tinha o Rato Rei. E ele não vem sozinho: trinta e quatro ratos de um metro de noventa de altura (!) o acompanham. A horda de roedores interrompe o trajeto do trem.

Então, Ganimedes, herói que era, saca sua espada dourada, presente de seu amigo Quebra-Nozes, e com ela enfrenta os enormes ratos. A brande no ar, e dela sai uma rajada de luz, que, em minhas infantes palavras, “desintegrou” os ratos todos.  Algo de Cavaleiros do Zodíaco e de Guerreiras Mágicas de Rayearth.

Após o ato heroico, a viagem terminava, e Ganimedes encontra o Papai Noel. O bom velhinho lhe presenteava com brinquedos e o necessário para viver. Muito mais do que o prêmio para um mero “bom menino que comportou-se bem o ano todo”, pois Ganimedes era muito mais que isso: era um herói!

E assim, o meu Ganimedes do Polo Norte virou um tipo de arquétipo dos heróis de minhas histórias, que fui escrevendo e imaginando desde então. Eu pensava, quando pequeno, que que dia cruel seria quando me tornaria adulto, e teria de deixar meus brinquedos e minha imaginação.

Mas, crescendo eu, cresceram também comigo as coisas que amo. E assim, cumpriu-se em mim a frase do Anjo Pornográfico: “O adulto não existe. O homem é um menino perene.”

Mas há um imenso abismo cultural, entre Rodrigues e eu.

O abismo entre a tragédia e o épico.

O abismo entre os crimes do sexo e os heróis de capa e espada.

O abismo entre o marido traído e Ganimedes do Polo Norte.

O abismo entre o Anjo Pornográfico e o Demônio Casto.

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