Não nego. Não sou admirador da obra de Nelson Rodrigues, o
Anjo Pornográfico. E não a conheço a fundo: limito-me a alguns contos lidos, e
as televisivas adaptações de alguns de seus trabalhos.
Na verdade, do que eu conheço, sou detrator: o universo
carioca da classe média, com seus casamentos-fachada, traições, sexo e
assassinato. O Anjo Pornográfico também ficou conhecido por suas breves e
certeiras frases. Algumas, caras reflexões de um culto - “Toda unanimidade é
burra.”, “O adulto não existe. O homem é um menino perene.”. Outras, delírios
de um reacionário - “A Europa é uma burrice aparelhada de museus”, e “O
socialismo ficará como um pesadelo humorístico da História.”
Sobre o dito do adulto não existir. Este tinha uma aplicação
muito particular no próprio Nelson Rodrigues.
Rodrigues, desde menino, foi versado na narrativa do sexo e
da morte.
"Sou um menino
que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino,
hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de
ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico."
Quando tinha oito anos, então aluno do Primário, ocorreu um
episódio marcante para o Anjo Pornográfico. Houve um concurso de redação em
sala de aula, cujo prêmio era a leitura em voz alta pela professora do texto
vencedor. O tema da redação era livre.
A professora, que tinha em Rodrigues um de seus alunos
favoritos, ficou chocada com a redação do guri: uma história de adultério.
Marido encontra esposa nua na cama, e um homem pulando a janela. O marido mata
a mulher, mas, com remorso, ajoelha ante o corpo da esposa, pedindo perdão.
Obviamente, a redação do Anjo Pornográfico era
indiscutivelmente a melhor escrita. Mas a professora declarou empate com o
texto de outro aluno, e leu somente o co-vencedor mais inocente.
Da primeira vez que ouvi dessa redação precoce do Anjo
Pornográfico, caí para trás. Na idade dele, eu escrevia coisas muito
diferentes.
Eu devia ter quase a idade do Anjo Pornográfico, numa
ocasião em que a professora pediu como atividade a escrita de uma redação. Eu
ficara encantado: vou escrever minha própria história! E já pensava em planetas
distantes, em heróis espadachins, em Space Opera. Mas a professora fixou um
tema: o Natal de um menino órfão e pobre. Fiquei arrasado.
De início, pensei que o texto teria de ser como aquelas
reportagens dos telejornais que odiava (e odeio).
Mas, minha imaginação cuidou para que eu fizesse a história
que queria, tomando o menino pobre como ponto de partida.
Aulas atrás, a professora havia escrito no quarto um texto,
cujo título era “Uma viajem ao Sol”. A mim, era um título grandioso para um
texto chato, que narrava uma história indígena. Decidi que o meu, então, se
chamaria “Uma Viajem ao Polo Norte”.
Para o nome do herói, escolhi um que eu gostava: “Ganimedes”.
Ganimedes era um belo rapaz que servia vinho aos deuses do Olimpo. Sim, eu era
vidrado em mitologia grega.
O nosso órfão pobre, Ganimedes – que nome para um guri de
rua! – admirava, comovido, uma árvore de Natal ricamente adornada, na vitrine
de uma loja. Mas, então, o sobrenatural, o fantástico, o transcendental: O
reflexo do eclipse do sol no vidro da vitrine abre um portal, que engole o
nosso herói. Ganimedes vai parar no Polo Norte da minha cabeça, com rios de
chocolate quente e brinquedos vários e novos espalhados nos mantos de gelo.
Aqui, eu bebi (chocolate quente?) do filme A Fantástica Fábrica de Chocolate,
e dos episódios especiais de Natal dos desenhos animados oitentistas.
A primeira coisa que Ganimedes encontra no Polo Norte é um
trem dourado, prestes a partir. O guri embarca, e assim viaja pelas terras
árticas, vislumbrado e alegre – um tipo de antecipação do longa animado O Expresso
Polar. Ganimedes ainda faz amizade com o maquinista do trem: o Quebra-Nozes!
Mas, se tinha Quebra-Nozes, também tinha o Rato Rei. E ele
não vem sozinho: trinta e quatro ratos de um metro de noventa de altura (!) o
acompanham. A horda de roedores interrompe o trajeto do trem.
Então, Ganimedes, herói que era, saca sua espada dourada,
presente de seu amigo Quebra-Nozes, e com ela enfrenta os enormes ratos. A
brande no ar, e dela sai uma rajada de luz, que, em minhas infantes palavras, “desintegrou”
os ratos todos. Algo de Cavaleiros do
Zodíaco e de Guerreiras Mágicas de Rayearth.
Após o ato heroico, a viagem terminava, e Ganimedes encontra
o Papai Noel. O bom velhinho lhe presenteava com brinquedos e o necessário para
viver. Muito mais do que o prêmio para um mero “bom menino que comportou-se bem
o ano todo”, pois Ganimedes era muito mais que isso: era um herói!
E assim, o meu Ganimedes do Polo Norte virou um tipo de
arquétipo dos heróis de minhas histórias, que fui escrevendo e imaginando desde
então. Eu pensava, quando pequeno, que que dia cruel seria quando me tornaria
adulto, e teria de deixar meus brinquedos e minha imaginação.
Mas, crescendo eu, cresceram também comigo as coisas que
amo. E assim, cumpriu-se em mim a frase do Anjo Pornográfico: “O adulto não
existe. O homem é um menino perene.”
Mas há um imenso abismo cultural, entre Rodrigues e eu.
O abismo entre a tragédia e o épico.
O abismo entre os crimes do sexo e os heróis de capa e
espada.
O abismo entre o marido traído e Ganimedes do Polo Norte.
O abismo entre o Anjo Pornográfico e o Demônio Casto.
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