sábado, 8 de junho de 2013

Uma Última Palavra Sobre a Carta de Quintana

E então, a exegese bíblica de Quintana. Desconhecendo a opinião dos teólogos, cita a passagem do Gênesis em que o patriarca Jacob luta contra um anjo. Para Quintana, Jacob é o Poeta, e o anjo, a Poesia. O poeta deve lutar com a poesia. Não há uma forma de lutar pronta: o poeta deve descobrir seus próprios meios de lutar. O final é incerto; não há garantia de vitória.

Não sei se foi proposital, mas a escolha deste trecho bíblico tem algo mais a dizer. E o que tem a dizer, bate perfeitamente com o próximo concelho de Quintana ao jovem poeta.

Na sequência do texto bíblico, o anjo pergunta ao seu adversário o seu nome. "Jacob", responde o aguerrido patriarca. E o anjo então rebate: "Não te chamarás mais Jacob, mas Israel, porque foste forte contra Deus e contra homens, e tu prevaleceste."

"Jacob", em hebraico, dá algo como enganador.  Jacob tinha a dissimulação própria de um comerciante, e com ela enganou seu velho e já cego pai Isaac, fingindo ser seu irmão gêmeo Esaú, e recebendo do pai a benção reservada ao filho primogênito.

Após a luta com o anjo, ele deixa de ser o enganador - e, por que não dizer, imitador? - para ser o homem que luta contra deuses e prevalece:"Israel".

Um artista, assim, iniciaria seus trabalhos imitando aos daqueles a quem admira, os Esaús da vida. Ora, os Beatles no início cantavam músicas de outras bandas, e Osamu Tezuka, o deus do quadrinho japonês, devorava os filmes da época para contar suas histórias. Mas, deste modo, descobriram a sua arte, e se tornaram nos grandes heróis os quais veneramos, fundadores de mundos e de culturas. Ora, não foi Jacob o pai da nação israelita?

Pois Quintana, em sua Carta, segue ideia análoga, quando aconselha ao poeta a estudar a velha métrica, que os poetas novos tendiam a não dar importância:

"(...)Da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico." 

Há uma espécie de diálogo do criador com a sua criatura: "Verás, com o tempo, que cada poema, aliás, impõe a sua forma...". Cabe ao poeta responder com os formatos mais apropriados. No âmbito da música popular - do Rock, que Quintana horrorizava - algo similar foi dito por Axl Rose, na entrevista que concedeu a revista Hit Parader: "(...)eu canto do jeito que a canção me pede para cantar".

Por fim, Quintana discorre sobre quais poetas se deve ler. Contrariando o senso comum - ou o senso acadêmico - diz Quintana: "Simplesmente os poetas que gostares".

O poeta não deve procurar entender os poetas, mas deve compreender-se a si próprio com a ajuda deles. A arte, para Quintana, é feita no indivíduo e na sua humanidade. Ele ainda relata da indiferença com que reagiu ao ler poetas famosos: "De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família."

E assim, Quintana encerra, de modo abrupto, a sua sacra epístola da arte. Seguindo o mesmo tom de conversa informal e semi-poética, termina tudo num aperto de mão:

"Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo E apareça-me daqui a uns vinte anos. Combinado?"

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